(In)Tolerância Lingüística e Cultural no Brasil

  (In)Tolerância Lingüística e Cultural no Brasil

 

                                                                     por EVA PAULINO BUENO*

Quando eu estava cursando o mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1985, tive que escrever um trabalho de fim de semestre para minha aula de Estudos Brasileiros. Na ocasião todos podíamos escrever com um colega, e eu convidei para fazer grupo comigo uma mulher de Minas, que vinha todas as semanas ao Rio para tomar as aulas do mestrado. A escolha desta colega não foi por acaso: ela, assim como eu, tínhamos tido vários problemas na nossa aula de Estudos Brasileiros, na tal Cidade Maravilhosa.
Minha colega, que vamos chamar aqui de Maria (pra simplificar), e eu, ambas falávamos a mesma língua que nossos colegas cariocas, mas, em várias ocasiões, tínhamos sofrido chacotas por causa de nosso sotaque. Ela, pelo menos, manejava o “erre” carioca mais ou menos, herança de Uberaba. Eu, por outro lado, vinha com meu sotaque caipira intacto, herança de meus pais mineiros do sul de Minas e de minha família do norte do Paraná. De certa maneira, Maria e eu, ambas “de fora”, tivemos que fazer causa comum para enfrentar o que sentíamos como hostilidade por parte dos colegas.
O que informou este trabalho de fim de curso, foi o desejo de esclarecer, pelo menos na nossa cabeça, aquilo que estávamos passando na Ilha do Fundão. O trabalho valeu como uma catarse para aquela experiência. Não conseguimos marcar a atitude de zombaria como parte do caráter “brincalhão” que os cariocas gostam de achar que têm. O nome do trabalho era “(In) Tolerância lingüística e cultural”. O trabalho escrito, e o fato de poder discutir o assunto com uma colega ajudou. Mas o trabalho não esclareceu para mim muitas coisas, e a situação, de tão marcante, serviu como uma espécie de inspiração para trabalhos que eu fiz em anos posteriores, sempre na tentativa de entender melhor o fenômeno que leva seres humanos – e até mesmo pessoas de um mesmo país – a menosprezarem a língua ou o sotaque de outras pessoas.
Logicamente, alguém pode achar que esta colocação é um exagero, e que não se deve comparar este tipo de experiência com o que muitos sofrem neste mundo, sendo barrados de trabalho, sendo perseguidos, etc. Afinal, entre mortos e feridos salvaram-se todos: fizemos o trabalho, terminamos o curso, terminamos o mestrado. Mas, convém lembrar, a dor de ser feito motivo de riso, até e também por razões lingüísticas, está diretamente relacionada com a experiência da discriminação cultural e racial. Certos assuntos, por marcantes que são, acabam ficando com a pessoa, e voltam à superfície de vez em quando.



                                                                           Julio Ribeiro, autor de "A carne"
Meu interesse no fenômeno ressurgiu mais tarde, em 1990, quando chegou a hora de escrever minha tese de doutorado em Pittsburgh. Como o assunto sobre o que constitui o “sujeito brasileiro” em suas várias diferenças continuava me interessando, decidi dedicar um capítulo da tese à questão da língua portuguesa no Brasil, tomando como base alguns romances escritos no limiar da república brasileira, quando a nação, pelo menos emocionalmente, sentiu que ia finalmente libertar-se de Portugal e adquirir feições de país independente. Parece-me que, nas situações limiares – tanto políticas como emocionais – aquilo que realmente importa volta à tona, e é apresentado de maneiras peculiares àquele momento. Dos romances naturalistas do fim do século XIX, decidi trabalhar a questão da língua usando especialmente A carne, de Júlio Ribeiro.
Este romance, publicado em 1888, ganhou ao seu autor escárnio tanto de seus contemporâneos como de outros críticos mais recentes, os quais o taxaram de absurdo e pornográfico, porque a personagem principal, Lenita, é uma mulher que gosta de sexo, e que leva seu amante ao suicídio. O crítico José Veríssimo, por exemplo, condena a personagem porque ela não tem “a simpatia fácil, o amor a um tempo recatado e namorador, a sentimentalidade um pouco piegas mas sincera, o fundo inconsciente de honestidade burguesa Brasileira (TEORIA, CRITICA E HISTÓRIA LITERÀRIA, 188-9) e diz que o romance é uma mistura de Júlio Verne e Émile Zola, com um tanto de Bocage. Mais tarde, ainda no mesmo texto, Veríssimo toma como ofensiva uma cena do romance em que um velho escravo, Joaquim Cambinda, conversa com outros escravos, porque não entende o que tal cena tem a ver com a história. Outro crítico, Araripe Jr., tem uma reação mais positiva ao romance, mas também se concentra na personagem principal e suas aventuras. Enfim, um crítico condena o romance porque a personagem não era realista, e outro porque ela era realista demais. A crítica, pode-se dizer, ou se concentra no mais aparentemente “escandaloso” aspecto da história, ou nos seus aspectos formais que não seguiam perfeitamente o modelo europeu. Ninguém estudou o  romance como uma análise aguda da questão lingüística como transmissora de uma série de questões pertinentes ao momento político em que A carne foi publicada. Ao invés disso, concentraram-se na questão simplesmente formalística da língua, ou seja, na sua correção, na sua distância da língua considerada adequada.
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Em “A ordem do discurso,” o filósofo francês Michel Foucault diz que o surgimento do discurso (da fala) pode parecer de pouca importância, entretanto,
The prohibitions that surround it very soon reveal its links with desire and with power. There is nothing surprising about that, since, as psychoanalysis has shown, discourse is not simply that which manifests (or hides) desire; it is also the object of desire; and since, as history constantly teaches us, discourse is not merely that which translates struggles of systems of domination, but it is the thing for which and by which there is struggle, discourse is the power which is to be seized. (110) [1]
Em A carne há uma relação muito próxima entre linguagem e as condições materiais e sociais de que o romance trata. É possível dizer-se que os autodenominados “especialistas em língua”, assim como os demais críticos, travaram uma verdadeira batalha sobre o romance discutindo se a língua usada no romance é ou não adequada. Embora o impulso inicial seja de tomar a questão da língua neste romance como se tudo o que os personagens dizem pode ser sujeitado à máxima de que a fala é transparente, e que cada palavra tem somente um significado, e que cada uma significa o que diz, temos que considerar também a possibilidade de encarar a língua como algo muito mais complexo, como uma força poderosa que define ou mesmo que cria realidades sociais, políticas e de gênero.
O pensador e crítico russo Mikhail Bakhtin, em sua discussão sobre os diferentes aspectos do discurso no romance, escreve que
Any concrete discourse (utterance) finds the object at which it was directed infected already as it were overlain with qualifications, open to dispute, charged with value, already enveloped in an obscuring mist – or, on the contrary, by the “light” of alien words that have already been spoken about it (THE DIALOGIC IMAGINATION, 276) [2]
No caso de A carne, o que eu quero fazer aqui é abrir esta disputa mais uma vez, e mostrar que palavras “alienígenas” já faziam parte da língua portuguesa do Brasil quando o romance foi escrito, e que a exposição de várias línguas e suas variantes neste texto constituem uma mescla de estratégias competindo por ter um lugar na discussão do assunto “língua portuguesa no Brasil” – e, por extensão, do que constituía a cultura do Brasil e quem estava em condição de definir esta cultura. Em outras palavras, suas presenças em A carne se constituem em exemplos polissêmicos da realidade ou das realidades que o romance procura representar.
No começo do livro, se encontram duas dedicações a Zola, em francês, seguidas de uma citação em latim. Não vou me deter no fato de que o texto, como está impresso no livro que usei para esta pesquisa (publicado pela Editora Saber em 1975), não segue regras básicas do português standard. A dedicação (ou dedicações, já que se encontram duas partes em páginas diferentes) diz (ou dizem):
Quoi qui’ilen soit, voici mon oeuvre. Agréerez-vous la dédicace que je vous en fais? Pourquoi pas? Les rois, quoique gorgés de richesses, ne dédaignent pas toujous les chéfits cadeaux des pauvres paysans. Permettez que je vous fasse mon hommage complet, lige, de serviteur féal en emprunant les paroles du poéte florentin: tu duca, tu signore, tu maestro.
St.paul, le25 janvier 1888 [sic]
Julio Ribeiro
Na página seguinte, voltada a esta onde está o texto acima, se encontra o que parece ou outra dedicatória, ou o começo da mesma, colocado em lugar errado devido à paginação, seguido de uma citação em latim dada como número “um”. Aqui está a transcrição fiel:
A. M. ÉMILE ZOLA
Je ne suis téméraire, je n’ai pas la preevéntion de suivre vos traces; ce n’est pas prétendre suivre vos traces que d’écrire una pauvre étude tant soit peu naturaliste. On ne vous imite pas, on vous admire. “Nous nos échauffons, dit Ovide, quand le dieu que vit en vous s’agitei”: eh bien! Le tout petit dieu que vit en mois s’est agité, et j’aiécrit La Chair. Ce n’est pas l’Assomoir, ce n’est pas la Curée, ce n’est past la Terre; mais, diantre! une chandell e n’est past le soleil et pourtant une chandelle éclaire.
Est Deus in nobis, agitante celescimus illo.
A primeira reação de um leitor pode ser a de perguntar o que estas duas páginas em francês estão fazendo no início de um romance escrito por um autor brasileiro. Várias possibilidades vêm à mente, e entre as mais óbvias está o fato de que Júlio Ribeiro quer fazer uma homenagem ao seu mestre Zola, como ele diz na dedicatória. Mas por que ele não escreve esta dedicatória em português? Ou, no caso de Ribeiro ter mandado uma cópia do romance ao autor francês, será que esta dedicatória era um fim em si mesma, destinada apenas a bajular a Zola, que provavelmente não leu o romance? Mas então, se Zola não podia ler o romance, por que Ribeiro faz a afirmação tão subserviente de que Zola é o sol e ele, Júlio Ribeiro, apenas uma vela? Naturalmente, também é possível que Ribeiro não tinha a intenção de mandar cópia alguma do livro a Zola, e que simplesmente usou este recurso de abrir o texto do romance (se bem que não diretamente na história, a dedicatória faz parte do texto em si) com várias línguas para estabelecer, logo de início, o caráter polissêmico do romance e também para chamar a atenção do leitor para outras complexidades que seriam apresentadas. Embora geralmente se aceite que a elite brasileira da época (convém frisar que o romance foi publicado no ano 1888) tinha pelo menos um conhecimento rudimentar do francês, a presença dos erros, assim como de três línguas ao mesmo tempo, joga com a questão da competência lingüística e do conceito da correção. A verdade é que, até o tempo da edição do romance em 1975, o datilógrafo e a pessoa que corrigiu o texto não sabiam francês (ou latim) suficiente para notar os erros mais primários, e nem sabiam que o início da dedicatória tinha sido colocado como o fim.
Como Júlio Ribeiro podia esperar que sua audiência poderia compreendê-lo, com tantas misturas? A resposta é: ele não podia, e nem esperava. Ou então, esta mistura chama a atenção a si mesma e ao nível de compreensão dos leitores. Valia a pena colocar várias línguas. Como resultado, o romance é um aglomerado de códigos lingüísticos e culturais que não são facilmente acessíveis. Por outro lado, naquele momento em que o Brasil, às vésperas do fim da monarquia e do princípio da república, precisava de um consenso (inclusive lingüístico), a presença destas múltiplas línguas dentro de um romance indicam que a língua portuguesa estava longe de ser uma realidade estabelecida e claramente codificada. Ao escrever esta dedicatória tão subserviente a Zola, abrindo a primeira página de um livro em que várias manifestações lingüísticas ocorrem, Ribeiro está chamando a atenção, imediatamente, para o papel que este assunto vai ter no romance. De certa maneira, paradoxalmente, ele parece sugerir que a habilidade de falar francês, ou qualquer outra língua européia, é a marca do grupo hegemônico, dentro do Brasil, que fala a língua portuguesa.
A realidade é que ninguém parece entender todos estes sutis níveis do romance, e os críticos atacam Ribeiro pela dedicatória e pela presença de línguas estrangeiras. Veríssimo, mais uma vez, dá o melhor exemplo: “em descrições, ao falar de uma planta, ele coloca entre parêntesis… o nome científico, [e isto ] é original em uma obra de arte” (TEORIA, CRÍTICA E HISTÓRIA LITERÁRIA, 191). Veríssimo está tão interessado no que ele chama de “a idéia fixa” de Ribeiro de mostrar seu conhecimento científico, que ele deixa de notar uma importante distinção feita no texto do romance: o texto com termos científicos é uma carta que o personagem Barbosa (filho do fazendeiro em cuja casa Lenita está hospedada é um estudioso de plantas e outros fenômenos naturais) escreve a Lenita, contando a ela o que viu na viagem a Santos. A carta na realidade tem muitos termos técnicos, mas como ambos Lenita e Barbosa são amigos com um interesse comum em tais coisas, era de se esperar que ele fosse o mais claro possível nas suas descrições.
As línguas e registros lingüísticos que aparecem no romance podem ser vistos como registros de como uma língua é falada, e como ela é escrita por pessoas que dominam a escrita, incluindo idiossincrasias que o escritor adota no texto. Veríssimo não perdoa nada:
Outra puerilidade, em que aparece o gramático, é a ortografia especial das palavras em que entra o grupo ch, todas escritas com kh, assim melankholia, kharacter, etc. Kilômetro é khiliometro, e à capital da Bariera, que foi sempre traduzida em português por Munich, conserva o Sr. Ribeiro a sua forma alemã München. (191, itálicos no original)
Tais formas não aparecem na edição de 1975, que uso para este estudo, mas é fácil imaginar-se a surpresa (e a irritação) dos críticos da capital ao ver que um autor brasileiro ousava usar tais maneirismos ortográficos. Porém, é preciso entender que a presença deste fator desestabilizante da língua portuguesa é apenas um fator entre muitos outros. Como a língua portuguesa – última flor do Lácio, que, no dizer do poeta, é inculta e bela, mas não podemos esquecer que é sempre flor, e sempre do Lácio – era o código lingüístico dominante, mas não conseguia conter as forças centrifugantes que Ribeiro coloca no romance, o texto acaba por se transformar em uma extravagância que mostra, ao mesmo tempo, como o português era poroso e inadequado para expressar o significado que o autor queria expressar. Em A carne, a língua portuguesa não tem um centro fixo, e além do francês, do latim, do italiano, e da “linguagem científica”, Ribeiro usa outras, com menos status. Em outras palavras, a língua portuguesa, embora seja a língua principal do romance, se transforma em um suplemento das outras línguas usadas no texto. Ou, se quisermos, porque a língua principal é o português, as outras línguas são o suplemento que ressaltam o português. De todas as formas, elas têm que coexistir, pelo menos neste texto.
Um outro registro importante desta instabilidade é o momento, no romance, em que um velho curandeiro negro, Joaquim Cambinda, junta alguns escravos em seu rancho e começa a fazer uma cerimônia. Ele é chamado de “mganga”. O editor do texto de 1975, em uma nota, explica que “mganga” é uma palavra africana que significa “senhor do tempo, distribuidor da chuva”, e, por extensão, “teólogo, padre, mestre” (A carne, 63). Aqui está o diálogo revelador:
- Zelómo, disse Joaquim Cambinda, ussê pensô bê nu quê vai fazê, lapássi?
- Pensô, mganga.
-Intossi, ussê qué mêmo si rissá ni rimanári San Migué rizáma?
- Qué, mganga. (63, itálicos no original)
Em uma nota, se encontra a versão para o português padrão:
- Jerônimo, você pensou bem no que você vai fazer, rapaz?
- Pensei, mestre.
- Então você quer mesmo alistar-se na irmandade de São Miguel das Almas?
- Quero, mestre.
Naturalmente, a língua de Joaquim Cambinda é uma variação da norma aceita do português, e, como a pessoa que a usa tem poder de feiticeiro dentro de seu grupo (os escravos), esta é uma língua poderosa. O feiticeiro conhece sua audiência, controla seu grupo, e usa conhecimentos do mundo natural para controlar os outros escravos através do medo. Quando uma mulher escrava morre na fazenda, e o doutor Barbosa (que além de branco e filho do dono da fazenda estudou a arte médica dos brancos) reconhece os sinais de envenenamento, Joaquim Cambinda é punido com a morte ao confessar que havia envenenado aquela mulher e outras pessoas.
A morte de Cambinda, aparentemente castigo por ter privado o dono do trabalho de pelo menos seis outros escravos, também pode ser vista como castigo pelo fato de ele manusear um conhecimento científico (venenos feitos de plantas) que somente os brancos se acreditavam possuidores, e por falar uma forma “bárbara” da língua portuguesa. Ele é morto por ter misturado os campos, por ter se arrogado poder sobre as “peças” escravas, por ter ciência, e por “sujar” a língua.
Júlio Ribeiro, com este romance, está fazendo algo parecido ao que Cambinda faz. Como escritor de romances, pelo menos de acordo com as normas de José Veríssimo, ele não deveria misturar ciência com romance, e não misturar outras línguas com o português. A diferença entre o que Ribeiro e o personagem fazem é que, para o escritor, a presença de tantas línguas de alto status – português, latim, italiano, ortografia alemã, e especialmente francês – e de exibicionismo de conhecimentos científicos, indicam que ele manuseia todas com relativa facilidade. Mas a língua que o pobre escravo usa não tem status dentro do país. A língua de Cambinda é a língua desprestigiada do subalterno, do negro, do que faz sua vida às margens do que se considera(va) a nacionalidade brasileira. O retrato que Ribeiro mostra é inquietante. O texto de Bakhtin, mais uma vez, nos ajuda a compreender a questão:
[E]very concrete utterance of a speaking subject serves as a point where centrifugal as well as centripetal forces are brought to bear. The process of centralization and decentralization, or unification and desunification intersect in the utterance; the utterance not only answers the requirements of its own language as an individualized embodiment of a speech act, but it answers the requirements of heteroglossia as well; it is in fact an active participant in such speech diversity. (THE DIALOGIC IMAGINATION, 272). [3]
Em A carne, um romance “maldito” na literatura brasileira, vemos então uma mostra do tipo de pulsões presentes na sociedade brasileira da época: de um lado uma mulher (Lenita) que ousava brandir as armas da ciência, era sexualmente arrojada (para a época), e falava várias línguas estrangeiras, e do outro um homem negro, escravo (Joaquim Cambinda), que também ousava brandir as armas da ciência por seu conhecimento das propriedades químicas das plantas, e ousava traduzir a língua portuguesa – última flor do Lácio, etc. – para a sua linguagem mesclada de palavras e sons africanos.
Os dois são elementos que encarnam a heteroglossia. O escravo é punido no romance. Lenita vem sendo perseguida pela crítica desde que o livro foi publicado. Os dois contradizem diretamente o que diz a nossa bandeira– “Ordem e Progresso”. Eles representam o que não pode ser tolerado, porque indicam a instabilidade, a diferença, o não branco, o não masculino.
- 2 –
Há uns tempos atrás, muitos brasileiros foram ofendidos pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, quando ele disse que o povo brasileiro é um povo bom, caipira. Alguns achavam que Fernando Henrique estava colocando todo o povo brasileiro “pra baixo”, e que queria dizer que todos eram idiotas, que não tinham sofisticação política, e “nem sequer sabiam falar direito.” Outros achavam que a ofensa se devia ao fato de que nem todos brasileiros são caipiras. Quer dizer, está bem rir do caipira, não está bem achar que todos são caipiras. Em outras palavras, enquanto o nome de “caipira” for usado para identificar “o outro” não há problema nenhum. Muita gente usa este epíteto de forma pejorativa no Brasil, e a cultura caipira fica sendo a representante daquilo que não tem sofisticação, não “acompanhou a evolução”.

                      [Cantadores do Interior de Minas nas Congadas]
Em todo caso, qualquer um pode ser caipira porque, como nos ensina Antonio Cândido, em seu livro Os parceiros do Rio Bonito, a palavra caipira não se refere a nenhum tipo físico especial, mas a um aspecto cultural prevalente no interior do estado de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso e, especialmente, a pessoas que estão ainda ligadas aos códigos culturais e religiosos “antigos”. Como Cândido fez a pesquisa para este livro no meio do século XX, e desde então houve grandes correntes migratórias dentro do Brasil, é possível que atualmente haja caipiras em todos os rincões do território nacional. Embora misturados aos habitantes originais de seus novos estados, cada caipira, ou descendente de caipira, leva consigo a cultura, e a língua, de seu grupo original. Quanto tempo e quais forças vão determinar que os recém-chegados vão se adaptar aos costumes, aspectos culturais e registros lingüísticos de seu novo lugar?
- 3 –
Há palavras dentro de uma língua que têm o privilégio de indicar não somente um objeto, ou descrever uma pessoa, mas expressar ao mesmo tempo o desenvolvimento histórico, estético, e político de um país. O termo “jeca tatu” é um dos melhores exemplos deste fenômeno dentro da língua portuguesa. De maneira geral, o termo está associado a outros como caipira, sertanejo, matuto, corumba, tabaréu, todos variações regionais usadas para designar o roceiro, aquele que participa, de uma forma ou outra, da vida não urbana.
De acordo com a literatura, foi o escritor Monteiro Lobato quem cunhou o termo “jeca tatu” em 1914, usando-o em uma carta ao jornal O Estado de São Paulo para descrever os agregados em sua fazenda em Taubaté. Para Lobato, este tipo de gente era “um parasita, um piolho da terra. . . inadaptável à civilização”. Mais tarde, com o interesse da Medicamentos Fontoura pelo tipo, Lobato revisou o personagem, e lhe deu esperanças, especialmente se ele tomasse alguns dos medicamentos da companhia farmacêutica para se livrar de doenças como a esquistossomose. Daí em diante, o Jeca Tatu virou personagem de história em quadrinhos, ganhou personalidade própria. Monteiro Lobato, projetado no cenário literário do país inicialmente pelas cartas escritas a um jornal criticando os jecas de sua fazenda, se transformou em figura pública, e em autor de sucesso. Mais tarde, quando da nona edição de Urupês, Lobato pede desculpas ao Jeca Tatu, dizendo que tinha compreendido que seu marasmo e indolência não eram fruto da preguiça, mas de doença.
Quando Monteiro Lobato – neto do Visconde de Tremembé, e advogado – cunhou o termo, ele estava expressando a falta de paciência do homem “culto”, com o homem “do mato”, que se escorava em desculpas e manhas para não trabalhar, para não participar e ajudar a trazer o progresso. Em 1914, doze anos depois da publicação de Os sertões por Euclides da Cunha, a idéia de que o “sertanejo” era um “forte”, provavelmente ainda não havia alcançado o interior de São Paulo, nem o livro a biblioteca pessoal de Monteiro Lobato. Por outro lado, se Lobato leu Os sertões, não identificou os matutos de sua fazenda com a figura trágica pintada por Euclides da Cunha. Da mesma maneira, é possível dizer-se que o brasileiro do tempo de Lobato raramente reconhecia, na vida real, aqueles que estavam supostamente representando as diferentes culturas e etnias brasileiras na literatura. O mesmo aconteceu com o índio (quem já viu um igual a Ubirajara, por exemplo?), e com o negro (lembram da escrava Isaura, negra mais branca que as brancas?). Como entender esta dicotomia entre a representação e o representado? Quem poderia abrir espaço para que o jeca, o piolho, fale?
A crítica e teórica indiana, Gayatri Spivak, tem um artigo muito famoso, em que ela pergunta se o subalterno, aquele que é historicamente subjugado, pode falar. Analisando a situação de grupos dentro de seu país, Spivak conclui que não, que o subalterno não pode falar, a não ser através de intelectuais de classe média que têm acesso aos meios de comunicação e a uma audiência mais vasta; são estes os que podem intervir em benefício do subalterno e tornar a sua condição conhecida, sua contribuição apreciada. Se analisarmos a situação dos jecas do Brasil, podemos concluir que, dentro da política e da história do país, eles são um dos nossos grupos subalternos. Resta ver se pode falar.
De fato, no Brasil, historicamente um país colonizado por europeus e habitado por uma grande maioria mestiça e mulata, os intelectuais urbanos (especialmente os sediados em São Paulo e no Rio de Janeiro), têm assumido a função de explicar na literatura, no jornalismo e nas artes em geral, o resto do país. Desta conjuntura resultam muitos mal-entendidos, porque, ainda tendo as melhores intenções, é difícil para quem nunca esteve na roça, nunca conheceu de perto a labuta do matuto, nunca bateu papo nem tocou viola com caipiras, nunca filosofou com jecas, nunca comeu a comida do tabaréu em sua casa, falar das suas vidas com propriedade, representar seus sonhos, desilusões, e esperanças.
Felizmente para o Brasil, houve já os que se dispuseram a conhecer de perto os jecas, respeitar sua originalidade, e abrir-lhes espaços para se fazerem ouvir. Entre estes está o já citado Antonio Cândido, que, em meados do século passado, viveu com os moradores das redondezas do Rio Bonito, caipiras que o acolheram fraternalmente e com quem ele formaram laços duradouros de amizade. Desta convivência resultou seu livro Os parceiros do Rio Bonito. Antes de Cândido, também Cornélio Pires havia tido experiência semelhante e escrito Conversas ao pé do fogo. Diferentemente de Lobato, estes dois escritores se aproximaram do Jeca e o viram não como empregado, como um inferior, mas como uma pessoa que tinha algo a compartir, a ensinar. Nem para Cândido nem para Pires o homem da roça, provavelmente descendente dos mesmos que Lobato havia atacado tão cruelmente em 1914, jamais era um “piolho”.
Mas quem mais se empenhou em dar espaço para que o caipira, o Jeca, pudesse aparecer na riqueza da sua subjetividade, foi o artista Amácio Mazzaropi. As razões para a sua escolha do Jeca como personagem de tantos de seus filmes são muitas, e complexas. Naturalmente, como homem de negócios, Mazzaropi sabia que seus filmes tinham que vender, e para vender, para enfrentar a concorrência dos filmes estrangeiros no mercado nacional, eles tinham que agradar ao público. O Jeca Tatu, personagem já inculcado no imaginário nacional como o representante do homem do campo, se tornou o condutor das idéias de Mazzaropi sobre as mudanças que o Brasil estava sofrendo em processo acelerado. Jeca Tatu se transforma, então, na imagem de todo brasileiro. Porque ele é branco, mas é pobre, ele se associa aos negros, e compreende sua situação de subalternidade. Porque ele é pobre, mas esperto, ele consegue vencer os espertalhões da cidade, e mais bandidos, e mais o diabo, e mais o que aparecesse à sua frente. Porque ele é um Jeca que em algumas histórias mora no campo, podemos acompanhar sua vida no campo. Quando ele vem para a cidade, podemos seguir suas lutas, suas dificuldades e suas vitórias.
Mas Mazzaropi não desenvolveu este personagem sozinho. Como homem de circo, mesmo quando já era rico e famoso, ele ia às cidadezinhas do interior, dava shows, conversava com as pessoas, e até convidava algumas para fazerem parte de seus filmes, como extras. Quando Mazzaropi morreu, ele nos deixou como legado seus filmes que funcionam como comentário das mudanças, uma espécie de arquivo histórico. Embora seus filmes sejam comédias, o Jeca não é apresentado como um idiota, ou o bobalhão que muitos na cidade crêem que o homem do campo é. Pelo contrário, o Jeca de Mazzaropi é um homem que sabe o que quer, e consegue o que quer, com esperteza, finura, e muita conversa.
Assim como outro representante do Brasil, o Macunaíma de Mário de Andrade, o Jeca – cunhado por Lobato, desenvolvido por vários artistas, e culminado na apresentação de Mazzaropi – é, assim como o sertanejo de Euclides da Cunha, um forte.
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Machado de Assis tem um pequeno conto, “Cantiga de esponsais”, que conta a história de um velho músico, Romão Pires, já no final de sua vida. Romão Pires tem o reconhecimento e o carinho das pessoas da cidade, que vão à igreja toda vez que ele é o regente da música da missa. Entretanto, ele tem uma grande tristeza na sua vida: embora ele esteja circundado por música, embora ele ame a música, ele não consegue compor, mas somente tocar a música dos outros.
Já velho, sentindo o fim próximo, Romão Pires se lembra da única peça musical que começou a escrever no passado, quando estava recém-casado, feliz ao lado da jovem esposa. A mulher morreu depois de três anos de casamento, e Romão Pires jamais conseguiu terminar a peça, uma cantiga de esponsais. Sentindo que não lhe resta muito tempo, o músico “teve uma idéia singular: – rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer cousa servia,uma vez que deixasse um pouco de alma na terra” (40).
E Romão Pires tomou a partitura e tocou as notas, mas não passava adiante. “Lá, dó… lá, mi… lá, si, dó, ré… ré… ré… Impossível, nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original, mas enfim alguma cousa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado” (40). Ele tentou de tudo para terminar a obra. Tentou trazer de volta a memória da esposa que havia inspirado o início da composição, fixou os olhos em um casal de recém-casados que ele podia ver de sua janela, ambos tão enamorados como ele tinha sido de sua esposa, ambos abraçados carinhosamente. Nada. “Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam” (40). Desesperado, “deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma cousa nunca antes cantada nem sabida, na qual cousa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.” (40)
Estas palavras finais do conto de Machado têm a concisão, a sutileza e a beleza de um poema. Elas nos fazem lembrar a todos nós, brasileiros, que a beleza da nossa língua e grandeza da nossa cultura está aí, sempre solta, sempre presente, e que somente se abrirmos ouvidos e olhos para suas diversas notas, que vêm de todos os cantos, até dos mais insuspeitados, conseguiremos ter a partitura completa da imensa, complexa, maravilhosa sinfonia que é o Brasil.

BIBLIOGRAFIA
Andrade, Mario de. Macunaíma. 26a. ed. Rio de Janeiro: Villa Rica, 1990.
Bakhtin, Mikhail. The Dialogic Imagination. Trad. Caryl Emerson e Michael Holquist. Austin: University of Texas Press, 1983.
Cunha, Euclides da. Os sertões; campanha de Canudos. 33a.ed. Rio de Janeiro: livraria Francisco Alves Editora, 1987.
Foucault, Michel de. “The Order of Discourse.” Language and Politics. Ed. Miguel Shapiro. New York: New York U. P., 1984.108-38.
Machado de Assis. “Cantiga de esponsais.” Contos. Seleção de Deomira Stefani. 26a. ed. São Paulo: Editora Atica, 2001.
Pires, Cornélio. Conversas ao pé do fogo (paginas regionaes). 2a.ed. São Paulo: Editora Monteiro Lobato, 1924.
Ribeiro, Júlio. A carne. 1888. SãoPaulo: Editora Saber, 1975.
Spivak, Gayatri Chakravorty. “Can the Subaltern Speak?” Marxism and the Interpretation of Culture. Cary Nelson and Lawrence Grossberg, eds. Chicago: University of Illinois Press, 1988.271-313.
Veríssimo, José. Teoria, crítica e história literária. Ed. João Alexandre Barbosa. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1978.

* Depois de quatro anos trabalhando em universidades no Japão, EVA PAULINO BUENO leciona Espanhol e Português na St. Mary’s University em San Antonio, Texas.   Ela é autora de Mazzaropi, o artista do povo (EDUEM 2000), Resisting Boundaries (Garland, 1995), Imagination Beyond NationNaming the Father (Lexington Books, 2001), e I Wouldn’t Want Anybody to Know: Native English Teachi ng in JapanREA, nº 31, dezembro de 2003. Disponível em http://www.espacoacademico.com.br/031/31bueno.htm (University of Pittsburgh Press, 1999), (JPGS, 2003). Publicado na
[1] “As proibições que o circundam logo revelam suas ligações com o desejo e com o poder. Não há nada surpreendente nisto, já que, como a psicanálise mostra, o discurso não é simplesmente aquilo que manifesta (ou esconde) o desejo – ele é também o objeto do desejo; e já que, como a história constantemente nos ensina, o discurso não é somente aquilo que traduz as lutas dos sistemas de dominação, mas é a coisa pela qual e através da qual se luta, o discurso é o poder a ser tomado”.
[2] “Qualquer discurso (pronunciamento) concreto encontra o objeto ao qual tinha sido dirigido já infetado, como se já estivesse carregado de qualificações, aberto a disputa, avaliado, e já circundado por uma névoa obscurecedora – ou, ao contrário, pela “luz” de palavras alienígenas que já foram faladas sobre ele”.
[3] “Qualquer ato lingüístico de um sujeito falante serve como um ponto em que forças centrífugas, assim como as centrípetas se põem frente a frente. O processo de centralização e descentralização, ou de unificação e desunificação, se intersectam no ato da fala; este ato não apenas preenche os requisitos da heteroglossia: ele é na realidade um participante ativo em tal diversidade de fala”.